Sindicato dos Vigilantes de Sorocaba

Sindicato dos Vigilantes de Sorocaba e Região

Desprotegidos: Vigilantes são expostos a riscos e adoecimento no trabalho

20/10/2022

Com salário base de R$ 1,2 mil, alguns só têm cadeira de plástico para trabalhar; vigilante foi demitida depois de transtorno psíquico provocado pelo trabalho

O ambiente de trabalho de Prudêncio* consiste em uma cadeira branca de plástico, onde só há água se ele levar a própria garrafa de casa. É madrugada em uma rua do Canela e o segurança conta as horas para o fim do expediente. Do emprego, ele pretende se despedir, para sempre, o mais rápido possível. Na balança entre os riscos e as recompensas, está claro quem pende para o alto.

A 100 metros de distância de Prudêncio, há outro colega de profissão, e os dois integram um exército paralelo bem maior – o da segurança privada, marcada na cidade por carros plotados, homens fardados e bonecos de papelão com as frases “Área monitorada e protegida”. Desde 2016, a presença dessas empresas cresceu 41% no Brasil e superou as forças de segurança pública.

Na Bahia, estão 46,3 mil vigilantes e 29,8 mil policiais militares. Nacionalmente, são estimados um milhão de profissionais privados para 385 mil PMs.

Em trinta anos de rua, o perigo iminente e o abuso de patrões causaram em Prudêncio a ansiedade que o fez decidir pelo abandono da profissão. Os seguranças ilegais, no Brasil, são estimados em 600 mil pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que responde pelos dados nesta reportagem.

De um canto sobre o qual não incide luz, Prudêncio vê “muita coisa”. Roubos, em sua maioria, e ele está ali para preveni-los, mas só a partir de certo perímetro, pelo qual o pagam R$ 1,8 mil mensais. O único repelente contra a violência é a presença dele, que não está armado

“É uma profissão perigosa. Mas tento esquecer e vir trabalhar”, conta ele.

Esse esquecimento é uma tentativa, de fato. No percurso para o trabalho, como fazem os policiais, Prudêncio não usa farda. “Policiais e vigilantes, somos os alvos [dos criminosos]. Depois do caso do Itaigara, ficamos ainda mais tensos, né?”, diz.

O “caso” é a morte do vigilante Jocelando na região do Alto Parque, no último sábado (8), ao ser atingido por dois criminosos. O parceiro de plantão dele foi atingido e está internado. Os autores do crime fugiram. O Sindivigilantes, que representa seguranças privados, não possui estatísticas sobre violência contra os profissionais - nem a cometida por eles.

“O aparato que os caras tinham para se defender era um poste”, diz Prudêncio, que foi ao local depois do crime e lembrou das vezes em que ele ou colegas trabalharam com armas quebradas e coletes à prova de bala vencidos, sem ponto de apoio, como guaritas.

Às vezes, seja depois do trabalho ou em noites de folga, Prudêncio reluta para dormir. Vê vultos onde não existe e desperta, assustado. Nesses momentos, a esposa, que, por medo, não gosta do emprego do marido, pergunta o que aconteceu. Foi só mais um pesadelo.

O adoecimento psíquico

Para Márcia, uma mulher no universo 86% masculino da segurança privada, o emprego de 18 anos custou parte da sua vida. Depois de um assalto onde trabalhava, o medo tirou dela a voz e imprimiu o pânico diagnosticado como transtorno de ansiedade.

Afastada do serviço durante quatro dias, Márcia voltou ao trabalho abalada, mais ainda pela arma na cintura. Em uma semana de retorno, a empresa a chamou para uma conversa que, para espanto dela, era um anúncio de demissão.

“Hoje, eu não durmo, só com remédios [três por dia]. Tenho pesadelo, ouço vozes, me tremo de medo”, compartilha ela, que recebia R$ 1,3 mensais e, desempregada, planeja agir diante da demissão que não poderia acontecer, devido ao quadro médico dela.

Na Bahia, há 1.748 seguranças afastados, mas o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) não detalha as razões.

Uma das principais tensões do segurança é trabalhar armado sem treinamento necessariamente adequado para usar o equipamento em “adversidades”, avalia a psicóloga Silvana Ribeiro, que atua em empresas de segurança. No Brasil, 267 mil armas de fogo estão no acervo dessas companhia - 14, 9 mil na Bahia.

“Considerando o nível da violência de hoje, alguns deles entendem que a qualquer momento estão expostos à situação [letal] e isso gera estresse”, diz Silvana. Se matarem, no exercício de trabalho, vigilantes não respondem criminalmente. A lei considera o “excludente de ilicitude”, como no caso de legítima defesa no cumprimento de uma atividade profissional. Em caso de morte de um segurança, com carteira assinada, as empresas pagam à família o seguro de vida – 26 ou 52 vezes o piso salarial.

A sobrecarga de trabalho é outro agravante para a saúde. Embora proibido, o acúmulo de empregos imposto pela necessidade empurra seguranças a jornadas de até dois sem dormir. Exaustos, precisam defender seus clientes – o que pode incluir matar ou morrer no exercício de uma atividade que paga, na Bahia, na base dos R$ 1,2 mil.

O valor é o segundo pior do Nordeste, embora estejam aqui as empresas que mais lucram nesta região brasileira. O faturamento anual delas, em 2021, foi de R$ 1,6 milhão.

Os maiores concorrentes do setor, inclusive para melhores condições de trabalho, seriam as empresas clandestinas e a idade da lei que regula o setor, promulgada há 40 anos. É essa a avaliação de Edimar Barbosa, vice-presidente da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist) para Assuntos Sociais, que defende o respeito à legislação trabalhista nas empresas legalizadas.

“A regra é contratar por CLT, não MEI ou qualquer outro contato. Tem muita gente indo nessa onda de MEI, mas é fraude”.

Sem carteira assinada, direitos trabalhistas são tratados como boa vontade do patrão. Não há seguro de vida, nem afastamento remunerado por doença. Já o problema da lei está com o Senado, que votará um novo estatuto para o setor. “A lei é tão ultrapassada que obriga os seguranças a portarem apito”, exemplifica Edimar.

A disseminação das empresas privadas pela cidade

No meio da tarde, Cassios* está em uma rua com cancelas e pequenas guaritas. De uma pracinha, sem apito, ele vigia 30 casas. Há um ano, o patrão mudou o contrato dele. Foi o fim da carteira assinada e a retomada da vida de autônomo, por R$ 1,2 mil. A família teme pela segurança de Cassius, que saiu da construção civil por incentivo de um parente.

Sem Ensino Médio, as oportunidades não eram das melhores, mas a troca de profissão também não foi lá uma mudança para melhor para este rapaz de 20 e poucos anos que traz pão e café para o turno de 12 horas. O restante da alimentação é oferecido pelos donos das casas.

“Já vi gente pulando muro, roubo de celular... Mas não estou armado nem quero, quero é mudar de área, não sei ainda qual”, conta.

A dinâmica em bairros ricos da cidade, como aquela onde trabalha Cassius, dialoga diretamente com a propagação da segurança privada. Ao fecharem vias públicas com cancelas e espalhar vigilantes por elas, associações de moradores delegam a empresas de vigilantes a suposta proteção deles.

Essa demarcação urbana sintetiza como segurança pública e privada formam uma “zona cinzenta”, define Leonardo Ostronoff, sociólogo que, no doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisou empresas de segurança privada. A morte do vigilante Jocelando, no último final de semana, intensificou a discussão já realizada pelo Sindivigilantes – as condições de trabalho oferecidas aos profissionais.

“A maioria das empresas não protege quem está na função de proteger. Sem as condições devidas, como guaritas, não há exercício seguro da profissão. Se não temos segurança, como vamos assegurar a do outro?”, afirma Paulo Brito, presidente do sindicato.

Os bairros do Horto Florestal, Caminho das Árvores, Pituba, Piatã e Stella Maris protagonizam esse processo. À noite, motos com sirenes circulam pelas ruas.

Mas a proliferação deste exército tem raízes mais antigas. Desde os anos 1990, o aumento da criminalidade, à força de políticas neoliberais que levam a uma individualização maior dos costumes e o escancaramento da segregação social, desenterrou um pânico real e moral e a ideia de prevenção contra o outro. Desse rescaldo, emergiu a segurança como produto.

“As coisas estão conectadas, fazem parte de efeito dominó, principalmente em cidades, e vão levando à busca de uma ‘sensação de segurança’. Há uma ideia de militarização da cidade, de um exercito privado que atua para proteger o outro, mas com condições de trabalho e formação deficitárias”, avalia Ostronoff.

Agora, a flexibilização do acesso a armas deve potencializar a busca de “sensação de segurança”, cita Ostronoff, e ganhará o setor das privadas.

A falta de amparo aos seguranças é criticada

A segurança privada no país é instituída oficialmente durante a ditadura militar, quando um decreto de 1969 obrigou bancos privados a terem esquemas de segurança. Mas só em 1983 uma lei regula o setor: tira das mãos dos governos estaduais a fiscalização das empresas e repassa a obrigação para a PF, que regulamenta até a formação dos vigilantes em curso com carga horária de 200 horas por um valor médio de R$ 850.

Na Bahia, existem 20 escolas de formação – maior número do Nordeste - que oferecem disciplinas como defesa pessoal e gerenciamento de crise.

“Evidentemente não é receita de bolo. Cada um tem o comportamento e, no local, pode ser tudo diferente”, afirma Rubens Dias, 66, bacharel em Direito professor de cursos de formação.

A maioria dos estudantes busca a profissão pela exigência de formação educacional apenas até a 4ª série do Ensino Fundamental. “Não procuram necessariamente porque gostam, mas por não terem muita qualificação formal. Quando perguntamos quem gosta da área, só uns 15% dizem que sim”.

A principal crítica de Rubens, admirador de filmes de guerra, à atividade é a falta de amparo psicológico nas empresas. Uma psicóloga que presta serviço para companhias de segurança disse à reportagem, sob anonimato, que das 50 atendidas por ela, apenas uma oferece psicólogos aos trabalhadores.

“A avaliação psicológica deveria acontecer pelo menos anualmente”, defende a profissional.

O restante das empresas faz (ou deveria fazer) o obrigatório – a “reciclagem”, procedimento exigido a cada dois anos e que valida a continuidade ou recomenda a exclusão temporária do segurança na atividade.

Em duas décadas de serviço, Nêmesis* passou por dez reciclagens – fora isso, nunca conversou com um psicólogo sobre ter visto tanta coisa, como um criminoso posicionar uma arma de fogo contra o peito de uma mulher. “São coisas que abalam sim o psicológico, ver gente sendo agredida”, conta.

Trajado de jeans e blusa polo ele observa a rua, um emaranhado de bares na Pituba. Os olhos vagueiam de um lado para o outro. “É o malandro de olho na gente e a gente de olho no malandro”, diz. Nessa vigília recíproca, raramente alguém leva a melhor.

*A pedido dos entrevistados, os nomes foram modificados.

FONTE: CORREIO 24 HORAS

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